sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Conto - O Reflexo de uma Sociedade Moderna

Eu conto um conto... ou melhor: narro um ocorrido.
O que são os dias quando não um aglomerado de horas urbanas, humanas, compassadas ritmicamente por um ritmo moderno incontrolável?
Sabe quando você pensa em pensar em nada, e consegue!!? Bem, eu não consegui. (E não consigo).
Dou o nome para o que vou escrever de...

O REFLEXO DE UMA SOCIEDADE MODERNA

Calor, Sol: dia.
Brisa suave, pouco refrescante (mas ainda bem que brisava).
Ônibus, assento do corredor. (Janela desocupada).
Meu eu quieto consigo mesmo.
Assim eu estava: mudo.

E um surdo entrou mudo pelo ônibus afora que de mudo não tinha nada. Distribuiu coisas para vender (pequenos adesivos multicoloridos e regras de como se falar com alguém que não ouve).
Tudo ali estava normal, modernamente normal para todos.
Ele olha para cada ser que postado estava em seu assento e pedia licença, com os olhos, para deixar seus adesivos e o manual do surdo em seu colo repleto de roupa, sujeira, fofoca: desdém...
Um a um.
Eu não precisava comprar um papel para falar com um surdo porque já sabia dizer a coisa mais importante quando visse um naquelas condições:
“Não, obrigado”.

É... parece inacreditável, mas do fundo de algum lugar surge um jovem jovem que se senta ao meu lado. (Pediu licença olhando em meus olhos). Sentou-se. Agradeceu-me.
Estava muito calor.

Foi então que o moço surdo voltou recolhendo, de sua total fracassada jornada, os papéis com as informações já informadas. Ninguém comprou, pois todos já sabiam dizer a um surdo o mais importante:
“Não, obrigado”.

Agora é que vivo o momento maior do conto, pois vivemos em um mundo moderno.

Esse pobre garoto pobre (entre 12 e 14 anos, subnutrido, destro, auto-riscado com uma estrela de Davi no caminho inicial do pulso ao anular, educado) faz surgir de sua mão uma nota que valia cinco vezes mais que um daqueles papéis de “como se falar com um surdo”.
Estendeu sua mão suja em direção ao homem que não ouvia, entregou-lhe a quantia e disse em sua língua:
“Não, obrigado”.

(“Não, obrigado”!!?!)
Senti vontade de chorar (juro por DEUS).
Ele dissera a mesma coisa que todos naquele ônibus disséramos. Mas não foi igual, não mesmo.
E mudo, o homem falou para pegar cinco “como se falar com um surdo”, mas ele recusou, pois não precisava, não precisava porque já sabia; ele disse “não, obrigado” exatamente na ordem inversa da que todos dissemos: ele não oferecia nada para vender, mas comprava cinco manuais (com as figurinhas) sem os ter pegado necessariamente.
Mas pegou.
Escolheu os cinco, não aleatoriamente.
Então, olhou para o surdo e disse o que ninguém havia pensado em dizer: somente um “Obrigado”.
O surdo se foi calado e contido em suas emoções mudas.
(Minha vontade de chorar ainda não).

Assim que pensei já ter visto tudo é que ocorre o inesquecível: o garoto, que tinha os olhos brilhantes e o rosto enegrecido pela sujeira, olha para os cinco “como se falar com um surdo”. Olha fixamente.
Olho atentamente.
Ele se levanta e eu vejo que ninguém, ninguém naquele ônibus, seja qual fosse a classe social, emprego em carteira, lugar que ocupasse na sociedade moderna ou no banco do coletivo de todos nós, poderia falar com um surdo, poderia falar com aquilo que estava ao seu lado, poderia querer entender a si mesmo.

Mas o menino sabia. Mas o menino pôde. E o menino fez.

O ônibus parou no local de embarque e desembarque de cargas modernas: pessoas gélidas e mudas; seres inoperantes que têm dificuldade, até mesmo, em dizer um “não, obrigado”; e coisas que se revelam anjos sem notarmos.
Com o coração em puras lágrimas levantei-me.
Com o pecado (e que DEUS e você me perdoem por isso que vou dizer), mas com o pecado do conto moderno do falso vigário eu bati uma de minhas mãos em meu celular e em minha carteira.
Foi nessa hora que’u tive certeza!
Logo após, olhei para o meu lado, rápido para o garoto que se postava em pé. Fitei-o bem nos olhos e vi o que havia dentro de si, por detrás daquela aparente sujeira mundana.
É isso mesmo, tinha sido ele quem fizera tal ação!

Descemos.
Quando percebi, ele já havia sumido. Desaparecido de meus olhos, mas não da minha atenção.
Agora entendo porque fez aquilo.
Agora entendo porque logo após de agradecer o surdo, deu-me um “como se falar com um surdo”.
Agora entendo porque guardou os outros quatro folhetos juntos em um de seus bolsos encardidos.
Agora eu sei porque ele desapareceu.
...

Em um mundo moderno, onde tudo se pensa o mal, sempre há aquele que fala com a gente e prova que o moderno existe em nosso estado passivo de observar as coisas, mas nosso coração ainda é puro, ainda pode ser puro e dependerá de como, ou até onde, você entenda, e saiba usar, o seu “não, obrigado”.
Talvez esse anjo tenha ido mostrar para outras pessoas como falar e entender as coisas ao seu lado.

Eu... Bem, fiquei aguardando o próximo coletivo, segurando em uma das minhas mãos o “como se falar com um surdo” e na outra o celular para verificar se não havia chegado nenhuma mensagem.
(Que tolo que eu fui! O celular não é o único meio de se mandar mensagens).

Eu, eu aprendi a dizer uma nova palavra depois daquele dia
(com as próprias palavras e, claro, com os sinais do coração):

“Obrigado”.