sábado, 2 de outubro de 2010

Histórias que o mundo não vê

Histórias que o mundo não vê.

O mundo bicromático de uma formiga suicida

Viu uma grande luz verde que desabrochara num clarão quase audível em sua frente. Era hora de ir.

Com os passos mais largos possíveis, iniciara a travessia de uma rua a pequena Atta, formiga grande para uma formiga e pequena demais comparada a um mindinho esquerdo do pé de um destro recém-nascido que será estimulado a jogar futebol, mas escolherá ser um professor quando a fase adulta chegar e o juízo ir-se embora.

Essa carregadeira, de asas não afloradas e um bumbum que causaria inveja às loiras, morenas, ruivas e transgênicos, olha a sua frente e encontra um grande mar branco de se pisar. Sente um pouco de medo, que é perceptível pelo tremer de sua perninha dianteira esquerda e o luzir do ‘piercing’ refratário da luz do Sol, mas ela é guerreira e mergulha nessa faixa branca. Passos a passos, caminha convictamente para chegar ao seu destino. Às vezes, passa por sua cabeça: por que não nasci canguru? Às vezes, passa sobre sua cabeça o conforto em ser apenas formiga: bolsas penduradas e balançantes com etiquetas ‘Made in Australia’.

Nem bem termina a metade de sua batalha com a distância da primeira faixa, o céu fica vermelho numa explosão muda que o silêncio soube silenciar. A pequenina formiga-de-roça estranha estar sozinha onde antes dividia espaço com selvagens.

Sem ligar muito para isso, continua sua caminhada sob a vermelhidão do fogo que não queima. É nesse instante que tudo fica complicadamente difícil de descomplicar. Ouviu ruídos de estouros (para os mais antigos e de duas rodas) e música vianense (nos mais novos com a ausência de um legítimo k7 de funk carioca) e grandes construções humanas do século XVII começam a deslizar de um lado para o outro no mar de asfalto que estava pisando.

Desesperada, já que não tinha o poder de uma iça e nem o apito de um guarda de trânsito (nem se tivesse), imóvel fica em sua posição de mera expectadora do destino de sua vida. Mas felizmente o mais próximo que uma roda rodou de si foi a uma distância equivalente a uma folha e meia de pingo de ouro.

Passado o susto e percebendo que o céu voltara a ficar claramente verde e os selvagens de outrora empurravam-se sobre sua cabeça, retorna a sua jornada ao outro lado.

De repente, um grande tamanduá pisa em seu corpo delicado deixando-o semidesfalecido e o conversível do prefeito faz seu cortejo andar até a segunda à esquerda depois da padaria Rei do Pernil, que era vegetariana. Já sem forças, pensa novamente em ser outro bicho qualquer, mas atira-se dentro do bueiro colocando a enorme traseira para esmagar todo o pseudocrânio e não deixar dúvidas à morte, que cuida da vida após o falecer, que deveria levá-la.

Lá fora, no mundo agitado e corrido de pessoas e automóveis que matam o tempo para ver se ganham mais depois (na hora do descanso), pisca um letreiro em ‘Monotype Corsive’ indiferente a tudo, alternando-se em verde e vermelho:

Empalhamos seu animal.

(Vivo ou morto)

Marcelo Lito de Moraes

2/10/10

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